domingo, 1 de abril de 2012

Estrangulados


       Era fim de tarde e ainda fazia um pouco de sol, o asfalto ainda molhado da chuva de outono. Sai com meu moletom, chutando as pedrinhas nas poças d’água, sem pensar em muita coisa, apenas com algumas palavras ecoando na minha mente. Tentava me livrar daquela frase, mas ela me cortava, me fazia sangrar. Caminhei sem rumo, enquanto observava os carros que passavam jogando água pra todo lado e as pessoas se espremendo nos muros para não ficarem encharcadas. Percebia as gotas nas folhas das árvores por onde passava, balançava algumas e ficava olhando-as até caírem no chão.

      O vento frio batia no meu rosto, e algumas lágrimas caiam junto com as gotas das folhas. Lembrei de quando pensei que não seria fácil, de como eu deveria evitar, de como eu deveria fugir, e lembrei de quando só passei por cima de tudo, quando não me importei se seria difícil ou impossível e só continuei. Continuei e cheguei aqui, me mantive firme, segura, me ergui até quando não tinha mais forças nem pra respirar. E continuei em pé só pra perceber, agora, que não adianta a força que eu colocava pra me manter, sempre há uma outra força, muito maior que a minha, que me derruba. Uma força que até posso nomear, algo como ingratidão, cegueira, falta de percepção, ou seja lá o que isso for. É o que me tira do eixo, da órbita. É a força que me deixa trêmula e faz sumir, o sempre presente, sorriso dos meus lábios, o substituindo só por choros baixinhos, abafados.
      Andei algumas ruas e parei num cruzamento. Observei os carros que iam e vinham, os que faziam coisas erradas, os que continuavam sempre certos. Olhei as pessoas, um ou outro cachorro perdido entre o movimento, e a chuva que voltava a cair, me molhando, dando a sensação de estar levando embora tudo o que me levou até ali. Não sabia mais se deveria voltar, ou se ficar ali mais um pouco seria bom. Eram quase inaudíveis os ecos na minha cabeça agora, eles já estavam saindo de onde só eu pudesse ouvir, já estavam no ar, por toda parte. Espalhados por aí, e não queria trazê-los de volta.
      Algo me dizia pra esquecer, e acho que foi isso que fiz. Continuei passando por várias ruas, agora prestando atenção nas pessoas que também deveriam estar com ecos em suas cabeças, e achei melhor, dessa vez, evitar e lembrar de como vai ser difícil... Assim, talvez, quando a força que eu tenho aqui comigo for maior e suficiente para me manter em pé, quando essa outra força queira me derrubar eu possa passar por cima de novo e aceitar que vale a pena enfrentar o difícil e o impossível pelo que eu acredito.

sexta-feira, 2 de março de 2012

é

      7h02m. Passo pela porta, andando vagarosamente, querendo ficar.  Entro no elevador e espero, enquanto mais algumas pessoas entram e ficam conversando... Tudo sempre automático, programadas pra falar bom dia. Não respondo, e fico contando os segundos para sair daquele lugar, finalmente chega ao térreo e eu sou a primeira a sair. Acendo o cigarro, e continuo andando...
    Telefone toca, ele me ligando novamente e, dessa vez decido atender. Quero te encontrar, ele me disse, e marcamos em um restaurante vegan na 412 norte. Percebo que cheguei muito cedo, e esse meu vício infernal ainda me atormentava, guardei o cigarro e fiquei quieta, apenas esperando.
    Ele chega, com aquele cardigan azul que eu havia lhe dado, e eu esqueço os meus olhos sobre ele, sobre seus ombros largos e seu sorriso radiante, me olhando. Admirável, tanto tempo depois, tantas lágrimas depois, meu coração ainda bate mais forte ao vê-lo.
     Caindo, rolando, rindo, brigando. Fui embora novamente sabendo que um dia ele ia me ligar me chamando pra ser dele mais uma vez e eu ia aceitar, como sempre aceito. Ia continuar querendo o mistério dele, ia continuar querendo a ignorância e o desapego. Ia continuar com a vontade de voltar pra casa querendo ser de alguém, com a vontade de querer viver novamente e me arrependendo, porque o “viver novamente” sempre me machuca.
     19h02m, chorando. Pego outro cigarro, e que se foda tudo agora. Ou foda-se nada, pois eu sentia que o nada era a única coisa que restava. Odiei-me por estar com aquele cigarro entre meus dedos e o joguei fora. Me acalmei, e voltei para casa junto ao nada.
    Tudo bem, é normal... Isso acontece, homens são idiotas e você também é! É normal. Vamos preparar algo pra comer, porque essa fome vai acabar te matando. Acalme-se, você não tem culpa de ser burra e não ouvir conselhos e você foi lá porque quis. Agora engole o choro e comece a fazer essa comida.
  Ligo o rádio, e pela primeira vez no dia me animo... Uma música do Lenine rolando e eu comendo todos os meus lindos vegetais e engasgando, como sempre. Ligo o computador, mas logo o desligo ao ver quantas vacas ele tinha adicionado no Facebook. Decido ir ler, O Diário de Anne Frank para aquele dia tenso. Paro na parte “... continuo a procurar um meio para vir a ser aquela que gostava de ser, que era capaz de ser...” e fecho o livro, realmente estava cansada.
   Desligo todas as luzes, e me deito. Querendo dormir para acordar com o sol batendo em meu rosto e os pássaros fazendo muito barulho em alguma árvore por aí. Eu levantando rindo, com toda a disposição do mundo, acordando sendo a pessoa mais feliz do planeta. Ou apenas dormir, sem ter nada em mente, dormir... Porque dormir era o que eu mais queria no momento.
   E tão rápido o despertador toca, parecia que eu tinha dormido apenas 15 minutos.  Levanto-me.
      7h02m. Passo pela porta, andando vagarosamente, querendo ficar.  Entro no elevador e espero, enquanto mais algumas pessoas entram e ficam conversando... É tudo sempre automático, programadas pra falar bom dia. Não respondo, e fico contando os segundos para sair daquele lugar, finalmente chega ao térreo e sou a primeira a sair. Não fumarei mais, e com isso na cabeça continuo andando.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

mais tarde

     Ela estava sentada em uma das cadeiras na estação, não havia muitas pessoas, mais ou menos 15h de uma terça-feira e o movimento não era muito grande. Não me aproximei, não podia, mesmo que eu quisesse muito ir e sentar-me ao lado, algo me prendia e fiquei parada olhando os trilhos até onde eles desapareciam na curva.
   Observei todas as pessoas que estavam na estação, uma mulher com uma saia rosa com uma bota marrom até quase os joelhos desceu a escada rolante sem jeito e, quase caiu ao meu lado. Segurava uma sacola grande e parecia pesada, mas achei que ela não gostaria se oferecesse ajuda. Outras três pessoas sozinhas se encontravam em alguns dos cantos da plataforma e outras duas ocupavam mais duas cadeiras ao lado dela.
   Quando eu realmente queria que o metrô passasse rápido, ele demorou mais do que o imaginável. Tentava observar e prestar atenção em qualquer coisa à minha volta para não ir até onde ela estava e pegar em sua mão, mesmo se fosse para não dizer nada, mesmo se fosse pra contemplar o que teríamos pela frente.
    Imaginei alguma desculpa para me aproximar, alguma palavra que fosse suficiente e que fosse maior do que um “eu não posso”, qualquer coisa, um mínimo detalhe que me faria ir até ali livre, sem me preocupar, sem que nada me impedisse. Nem mesmo meus conselhos serviam pra mim, nem mesmo minha coragem me acompanhou. Eu poderia pensar em escapar de todas as coisas que me faziam ficar parada olhando o outro lado, poderia enganar o que me prendia e sentar-me, recolher-me ali ao lado.
      Com o barulho todos levantaram e se aproximaram da linha amarela e algo me fazia acreditar que ela estava cada vez mais próximo, que cada instante eu gostaria mais de tê-la perto, e por um milésimo de segundos, quando acidentalmente olhei para ela e ela vinha na minha direção para ficar ao meu lado, quis muito que o motivo fosse eu e não somente a porta que abriria à nossa frente. Esperamos a porta abrir, uma ao lado da outra, e entramos.
      Metrô vazio, sentei, ainda com meu fone de ouvido e ela sentou um pouco distante. Distante era uma palavra corretíssima, ou não. E mesmo assim continuamos ali, seguindo juntas, na mesma direção, contando apenas com a distância, que era o que ainda nos separava.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

enquanto sós

    Não foi como eu imaginava, mas como ela falou que ia chegar atrasada e já estava a caminho, achei melhor seguir em frente. Entrei sozinha, acompanhada apenas da minha jaqueta marrom, que uso quando desejo impressionar alguém. Na entrada do local duas estátuas recebiam os fregueses, poucas luzes amarelas marcavam o lugar, as pessoas eram apenas penumbras e as paredes completamente revestidas de pôsteres de filmes me chamavam atenção. O rock se misturava com as vozes das pessoas que conversavam, mas era agradável. O lugar era pequeno e fechado, e me sentei à mesa do canto para poder observar a decoração.

    Por um momento coisas passavam na minha cabeça e um tipo de frio na barriga me atingiu, não me lembrava mais como puxar assuntos ou fazer elogios. Afundei na cadeira, observei o lugar. A pouca luz não me deixava ver as pessoas com perfeição, mas o que eu podia ver eram grupos de amigos, uns casais e caras olhando para as meninas de outras mesas.

      Ela chegou uns quarenta e cinco minutos depois e me senti bem ao vê-la vindo em minha direção, sorri e ela estava linda como sempre. Sentou-se ao meu lado e pedimos algo para comer, ela pediu um suco e sorriu pra mim.

    - Parei de beber, esqueceu?

    Ri de volta e conversamos coisas sem importância até a comida chegar.

    Acho que precisávamos falar sobre tantas coisas, tantas coisas precisavam ser ditas e lembradas que preferi formar desenhos com palitos de dentes. Olhei pra ela, estava tão concentrada em mexer o suco com o canudo que imaginei que ela estava querendo que o silêncio continuasse, assim como eu. Me perguntei quanta coisa cabia naquele silêncio, achei que se falasse alguma coisa poderia estragar tudo, continuei olhando pra ela, que estava decidida em girar o canudo no copo. Imaginei como poderíamos ser felizes, como eu queria tê-la ao meu lado por muito tempo, imaginei como eu tinha que ter falado muitas coisas ao invés de apenas olhá-la e percebi, então, que em meio ao silêncio e um copo de suco, poderia caber uma vida, ou até duas.

      Vi os banhos de chuva, as risadas altas ou as abafadas, quem sabe uma estrada, uma praia. Escovas de dente, livros e copos sujos. Abraços, andando de mãos dadas comentando sobre aquele filme no cinema. Talheres, respirações, algumas lágrimas e brigas. A dedicação, o acordar com um beijo na testa e sentir a sensação de ter tudo no mundo. Idas a lugares idiotas, quedas, mordidas ou olhares que expressam tudo.

     Mas o silêncio bastava. Ocupava o lugar das palavras que precisavam ser ditas, ocupava o lugar do carinho ou de algum beijo, de uma decisão de querer estar ao lado por muito tempo. Ocupava o lugar das discussões, brigas.

    Ela me olhou, e era como se tudo o que eu havia pensado estivesse escrito ali em seu rosto, no seu olhar e, naquele instante, todo o tempo do mundo se estendia diante de nós. Todas as nossas escolhas estariam ligadas, como se nossos caminhos começassem a ser construídos para se cruzarem, fazendo parte um do outro por muito tempo, seguindo a mesma direção.

     E então eu não precisava de nada, nem de palavras ou de confirmação. O silêncio cumpriu o seu papel. Eu queria estar com ela. 

    Dividimos a conta, passamos pelas estátuas na saída e caminhamos lado a lado pela calçada. A puxei para os meus braços e a abracei, aproveitei o momento, sabendo que não sentiria seu toque outra vez.